Marcelo V. Prado
Sócio-diretor do IEMI – Inteligência de Mercado, e membro do Comitê Têxtil da FIESP.
O resultado é que surge uma distorção enorme, onde as empresas locais se encontram expostas a uma competição em que elas não têm como sair vencedoras.
O caso do site de e-commerce chinês Shein (e ele não é o único), vem repercutindo em todo o mercado de moda do Brasil e nos grandes países consumidores do Ocidente, onde as redes de varejo e as grandes marcas locais, sentem-se profundamente ameaçadas pela competição oferecida por essa gigante da tecnologia, que construiu um market place capaz de vender produtos a preços de varejo, bem mais baratos do que os produtos fabricados pelas empresas brasileiras.
Essa competitividade surgiu com o desenvolvimento de novas tecnologias aplicadas em todas as etapas do processo de compra e venda, em especial na logística, onde a empresa consegue conectar indústrias localizadas em um país, diretamente a seus consumidores finais, em um outro pais, independentemente do tamanho do pedido realizado. É uma operação de venda online, B2C, onde o “B” está em um país e o “C” em outro, sem que isso impacte em grandes prazos de entrega, garantido pelo transporte via aérea e a entrada em nosso país pelo “canal verde” de importação (que permite o desembaraço automático do produto, dispensando as análises e verificações de documentos e mercadorias), além de se enquadrar num modelo de importação isento do recolhimento dos impostos regulares, uma vez que as leis brasileiras atuais isentam de qualquer imposto, remessas internacionais destinadas a pessoas físicas, até o limite de 50 dólares americanos.
A competência empresarial da Shein é inegável, ao desenvolver ferramentas e tecnologias suficientes para gerir com eficiência a compra de milhões de consumidores, em diferentes países, mesmo quando estes compram uma ou duas peças por pedido, sem que isso impacte nos custos do frete ou nos prazos de entrega, ainda que estes produtos sejam trazidos de fornecedores distantes há dezenas de milhares de quilômetros de distância. Com uma operação fragmentada em compras individuais, têm sido possível à Shein manter suas importações dentro dos limites de isenção de impostos e no modelo de desembaraço automático, no Brasil. Para tanto, foi preciso montar uma extensa e diversificada rede de fornecedores e operadores logísticos, ao longo do desenvolvimento da empresa, em uma escala possível apenas em mercados com dimensões superlativas, como a China, o que viabilizou a expansão inicial da empresa e lhe deu a robustez necessária para ser competitiva internacionalmente.
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No Brasil, o fenômeno Shein acabou encontrando proporções incríveis, onde o seu aplicativo de compras recebeu cerca de 52 milhões de downloads, quase o dobro do verificado nos EUA, o segundo maior, com 27 milhões de downloads, e o triplo do México, o terceiro maior, com 17 milhões. Somente em artigos de moda (roupas, calçados e acessórios), estima-se que a Shein tenha vendido em nosso país R$ 7,5 bilhões em 2022, quatro vezes mais do que no ano anterior (2021), abocanhando uma fatia aproximada de 27% das vendas online do segmento. Nesse período, suas ofertas a preços estonteantemente baratos, conquistaram milhões de consumidores brasileiros e a tornou popular o suficiente para dispor hoje de uma legião de engajados defensores da empresa, na condição de verdadeiros brand lovers.
Muito além dos méritos da empresa e dos avanços tecnológicos e logísticos que ela alcançou, as autoridades brasileiras que regulam o nosso mercado, e que hoje se veem diante da concorrência da Shein, não podem fechar os olhos para a diferença abissal de tratamento entre as empresas locais, submetidas a todo tipo de regulação, pesados encargos e tributações, a um sem fim de obrigações tributárias, contábeis, trabalhistas, ambientais e certificações próprias, que simplesmente não são cumpridas ou aplicadas à Shein, ao se permitir que ela tenha acesso ao nosso mercado, sem pagar qualquer imposto, local ou de importação, por uma brecha na legislação gerada por um sistema tributário ultrapassado, que jamais previu a possibilidade de uma empresa ganhar escala, intermediando importações de pequenos valores.
O resultado é que surge uma distorção enorme, onde as empresas locais se encontram expostas a uma competição em que elas não têm como sair vencedoras. Mesmo que uma grande loja de departamento resolva importar os mesmos produtos, dos mesmos fornecedores da Shein, jamais eles alcançarão os mesmos preços de venda nas lojas dessas empresas, simplesmente por que os produtos que adquirem lá fora, dado os volumes de uma compra B2B, chegarão ao país pelos canais convencionais de nacionalização, pagando todos os impostos incidentes sobre a importação (somente o imposto de importação para o vestuário hoje é de 35%), além dos tributos incidentes sobre qualquer produto comercializado no país, independentemente de sua origem (ICMS, PIS/COFINS, Contribuição Social etc.).
O fato é que, economicamente, ainda que possam parecer impopulares, os impostos sobre a importação de produtos existem para garantir um mínimo de proteção às empresas instaladas em diferentes países e que se encontram submetidas a “ambientes de produção e consumo” muito distintos, onde se impõe custos de operação e de insumos, regulações e impostos muito diversos entre eles, como é notório no caso do Brasil, comparativamente à maioria dos países asiáticos.
Ou seja, às empresas brasileiras e suas entidades representativas, só resta pressionar o governo e as instituições reguladoras do mercado nacional, a reverem o mais rapidamente possível as permissões para que uma empresa intermediadora, seja ela nacional ou estrangeira, possa se valer de uma legislação ultrapassada para driblar todo um sistema de regulação e tributação existente no país, ao qual as demais marcas nacionais se encontram submetidas, expondo-as a uma concorrência injusta e desleal, ainda que a sua operação possa ter ares de legalidade, numa análise mais superficial.
Indicadores conjunturais
De acordo com os indicadores mensais de desempenho do mercado de vestuário, em dezembro de 2022, último dado disponível à época da edição dessa coluna, as indústrias do setor registraram um recuo de produção da ordem de 35,9% em relação a novembro de 2022.
Os dados mostram que a produção industrial do setor foi 8,4% menor do que a observada em 2021.
Os dados para as vendas do comércio varejista, em dezembro, por sua vez, indicam um aumento de 74,8% no volume de peças comercializadas e de 77,6% em valores nominais (sem descontar a inflação), sob reflexo do tradicional boom nas vendas de final de ano. No entanto, o volume de peças comercializadas ao longo de todo o ano de 2022 foi 0,5% menor do que o registrado no acumulado de 2021; enquanto que esse indicador, quando mensurado em valores nominais, registra um crescimento de 15,4% na comparação anual, dessa vez fruto da elevada inflação registrada para essa linha de produto, no ano passado.
Pelo lado dos preços ao consumidor, segundo os dados disponibilizados pelo IPCA-IBGE, em janeiro de 2023, houve deflação no segmento de vestuário (-0,27%), frente a dezembro de 2022, enquanto no mesmo período a inflação geral no país foi de 0,53%. Quando se analisa a inflação do vestuário nos últimos 12 meses, porém, constata-se que ela está muito acima da inflação geral: 16,45% ante 5,77%. Essa alta inflação no último ano é a principal causa na queda dos volumes comercializados do produto, no varejo local.
Com relação ao valor das importações, em fevereiro de 2023, último dado disponível, registrou-se uma queda de 4,3% em comparação ao valor importado em janeiro de 2023, atingindo o montante de US$ 175,3 milhões no mês. No acumulado dos dois primeiros meses de 2023 houve crescimento de 32,7% no montante importado na comparação com o mesmo período de 2022, o que poderá impactar negativamente a demanda dos grandes varejistas para os produtores locais, ao longo desse ano.
As exportações brasileiras de vestuário, em fevereiro de 2023, apresentaram aumento de 16,9% frente ao resultado de janeiro de 2023, atingindo o patamar de US$ 12,5 milhões. Ainda assim, no acumulado do ano, o montante exportado é 2,8% inferior ao observado no mesmo período de 2022.
Assinatura: Marcelo V. Prado é sócio-diretor do IEMI – Inteligência de Mercado ([email protected]), consultor de empresas, especialista em inteligência de mercado, diretor adjunto do Comitê Têxtil da FIESP e diretor de pesquisa da ABIESV.